segunda-feira, 17 de maio de 2010

e cá está,

com os braços cruzados em cima do volante esperava que o autocarro enchesse, todos os dias, várias vezes ao dia, menos vezes ao sábado, domingo e feriados. aos passageiros dava confiança a sua cara resistente ao passar do tempo e o saber meter conversa amigável sem por isso sentirem alguma travagem mais brusca; a ele dava-lhe confiança o cartão preso no canto do tabliê que a mãe lhe tinha dado no primeiro dia de serviço, com um homem de ar atento mas calmo, com uma barba castanha, um coração perfurado por espinhos e uma auréola. era o tipo de cartão grosso e metalizado que quando se mexe muda a imagem, e o homem passava de sério a sorridente. saber que tinha alguém a observá-lo dava-lhe a motivação para tornar cada passageiro um passageiro feliz, a ajudar as velhinhas a subir os degraus e deixar passar um ou outro rapaz sem trocos para a tarifa. já muitas vezes tinha recebido elogios ao seu retrato, o mais estranho dos quais o de um jovem que lhe chamou kitsch. ainda tentou lembrar-se da palavra para procurar no dicionário mas quando chegou a casa já trocava o tsch com chts. associou a palavra ao exótico e passou a ter ainda mais gosto no seu jesus. nos dias em que ninguém por perto lhe dava bola, baixava o olhar para o tabliê e sentia-se um pouco menos sozinho, ali á frente daquela gente toda. gostava de pensar que quando a dona madalena lhe dizia qualquer coisa mais simpática que o companheiro lhe piscava o olho, como se uma lomba na estrada fizesse o cartão mexer-se um bocadinho em concordância com o divino. nunca ousou perguntar á dona madalena se era casada, e um dia sentiu um sobressalto no coração quando ela subiu para o seu veículo de braço dado a um homem. sobressalto porque ainda tentou perguntar, em jeito de brincadeira, se vinha passear com o irmão e a resposta foi não, e porque o homem trazia um vestido branco e por baixo do pano que usava na cabeça deixava adivinhar o cabelo comprido e castanho a emoldurar a barba rija. era dia de calor forte e o desgosto de ter perdido a sua amada assim tão de repente deu-lhe a volta á cabeça e ás tantas já via o sol a raiar por trás do homem como se não fosse deste mundo. e destroçado, deixou o autocarro na estação ao fim do dia e atirou para o lixo o cartão metalizado, já sem aguentar olhar a cara serena do safado. desde esse dia que deixou de ser o condutor bem amado para passar a ser mais um chauffeur colectivo, o homem que os levava do ponto a ao ponto b. perdeu o que tinha de bonacheirão, não dizia olá nem tão pouco esperava que saíssem todos para fechar as portas, e com o passar do tempo a ideia de encontrar o senhor joão no percurso de volta a casa deixou de ter o mesmo calor. o antigo funcionário obediente nunca recuperou da traição, e dias depois de nunca mais aparecer houve ex-passageiros seus que comentaram terem-no visto no terreiro do paço no dia em que o papa veio, a furar a multidão de bicicleta e rindo-se como um louco que sente o ar da liberdade pela primeira vez desde sempre.

publicado em os fazedores de letras nº70, maio 2011.

2 comentários:

Anónimo disse...

Joanaaaaa gosto tanto disto!!!! *.*

Anónimo disse...

Continua, rapariga, que estou a gostar muito de te ouvir (I mean, ler). :)